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Tire os sapatos, fique a vontade...a casa é sua!
Rodas de conversas sobre política, educação, trabalho, movimentos sociais a partir de uma perspectiva local e regional...
Espaço de prosa, poesia e, sobretudo, de diálogo perpassado pelo respeito e pela acolhida aos múltiplos olhares, pois como lembra Leonardo Boff, "todo ponto de vista é apenas a vista de um ponto".

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Sobrancelhas Pintadas!


"Só então me dei conta
de que o amor não é apenas fonte de felicidade
ou um jogo, mas parte da incessante tragédia da vida,
tanto sua eterna maldição quanto a força avassaladora
que lhe dá sentido".
                             Nadezhda Mandelstam.


Pelo menos até o dia do ocorrido, L.H. era um sujeito centrado, como todos os sujeitos centrados. Tal qual H.G[i]. ele também trazia suas inicias em sua velha carteira estragada, da qual ele tanto gostava. Aprendera a suportar o mundo, embora, no mundo, se sentisse como um peixe fora d’água; aprendera a suportar as pessoas com as quais convivia e para as quais tinha sempre um sorriso nos lábios e ternura no olhar... Aprendera, às duras penas e através de muitas lágrimas, a suportar a si mesmo. Já estava mesmo ficando bom nisso de suportar-se e suportar o insustentável peso do mundo. Quando tinha dez anos, seu pai o levou ao México e foi lá que um velho feiticeiro, por nome de Dom Juan  falou que “ela” viria. "Como um tsunami, sem aviso prévio", disse-lhe o velho. Muito tempo mais tarde, a cigana que leu sua mão não quis dizer o que viu, entregou-lhe o dinheiro de volta: “fique com seu dinheiro, moço... Não vale a pena contar tudo que vejo, não vale a pena sofrermos duas vezes”. Na noite anterior ao ocorrido, contrariando as palavras do antigo feiticeiro, ouviram-se o canto dos galos, antes da meia noite, coisa que para sua falecida avó era tida como mau presságio. A meia noite em ponto, todos os cães da cidade começaram a ladrar e a correr desesperadamente, mas para L.H. aquilo não passara de um incidente normal, desafiando a anormalidade do presente. Ao acordar, pela manhã, tomou o café de sempre, com pão quentinho e ovos frescos; escovou os dentes, beijou a esposa, deu bom dia ao vizinho, entrou apressadamente no carro. Durante o trajeto para o trabalho, errou duas vezes o caminho, o que definitivamente parecia fora de ordem. Na terceira rua, à esquerda, teve que frear rápido, para não atropelar um gato preto que atravessava a rua, correndo atrás de um camundongo que, no momento seguinte, enfiara-se no bueiro. Também ele entrou correndo no escritório, onde uma pilha de papéis esperava pacientemente sua assinatura, a qual ele colocava sempre com muito desvelo. No finalzinho da tarde, quando todos os funcionários iam embora, ele costumava ficar sozinho, e era então que entrava em contato com o que tinha feito de si mesmo. Foi no final daquele dia, quando L.H mirava o próprio interior que, sem ao menos bater na porta, “ela” entrou. “Procurava o Sr. K.”, sem sequer dar-se conta de que havia entrado no compartimento errado. Enquanto falava, seus olhos se encontraram com os de L.H fazendo-o sentir calafrios no corpo. Do resto encarregaram-se suas sobrancelhas pintadas e o pequeno sinal que trazia no rosto. Para L.H. foi tudo muito de repente, um instante: e de repente uma estrela cadente caia no mar; o mundo roía a seus pés, seus fantasmas todos lhe visitavam e, em sua alma, ondas gigantes se formaram. Ao longe se podia ouvir a voz de Caetano: “eu te quero só pra mim, (...) mimar você, nas quatros estações...” Com vertigens,  L.H. apegou-se a única janela que havia no compartimento e cujo vidro estava molhado pelas pequenas gotas d’água da chuva, que caia vagarosamente.


[i] Referência a personagem de Clarice Lispector.